Anotações sobre o Conceito de Martírio


ANOTAÇOES SOBRE O CONCEITO DE MARTÍRIO
José Comblin

Mártires são os que foram mortos por causa do testemunho de Jesus. Mas a forma do testemunho varia de acordo com as situações históricas, porque o contexto varia. Além disso, há em todo martírio um aspecto de ambigüidade porque os que matam sempre têm razões históricas que os justificavam. O martírio é sempre um ato histórico inserido num contexto social determinado e que varia no decorrer da história.
O cristianismo nasceu e viveu até os tempos modernos (1700 na Europa do Norte, 1850 na América latina com a vitória do liberalismo) nessa época em que a religião   estava ligada à política porque ela era o que dava fundamento ao poder, e era ela mesma o poder, representando um Deus todo poderoso, fundamento da sociedade total, que era a legitimação dos poderes terrestres. Por isso toda mudança na religião constituía um problema político. Qualquer mudança na religião punha em perigo a legitimidade da sociedade estabelecida e dos órgãos do poder político. Durante séculos, os cristãos constituíram um perigo político e foram perseguidos pelas sociedades nas quais entraram. Ao invés, quando se formou a cristandade, esta perseguiu todos os elementos que a ameaçavam pela sua diferença e fez muitos mártires nas outras religiões minoritárias na cristandade (judeus ou muçulmanos sobretudo)
Jesus foi morto porque as autoridades judaicas o condenaram por ser blasfematório, isto é, porque queria destruir a religião dos seus pais, destruindo toda a estrutura do poder: o templo, o sacerdócio, os sacrifícios, a lei de Moisés. Mataram-no para defender a religião  contra um ímpio. Os romanos condenaram-no como suspeito de querer rebelar-se contra o Imperador com as suas pretensões messiânicas. Se Jesus tivesse vivido de acordo com a religião dos seus pais, não teria sido mártir. Foi um rebelde contra Deus, assim acharam os que o condenaram. Porque era um perigo tanto para o Imperador romano como para o sistema político-religioso do judaísmo na Palestina.
Estêvão foi morto pelas mesmas razões, por querer destruir a religião  do seu povo, destruindo a base de todo o poder político que era o templo. Naquele tempo o perigo estava na mensagem religiosa e os cristãos  foram perseguidos porque anunciavam uma religião que ameaçava a estrutura política do país.
No Império romano, cristãos foram perseguidos e mortos porque se negaram a venerar o Imperador como deus, o que era sinal de infidelidade ao Império e ameaça de rebelião. Foram considerados como suspeitos de rebelião. A sua negação do culto do Imperador, fundamento do seu poder, era um perigo para a segurança do Estado. Foi um ato político em primeiro lugar. Esse era o aspeto histórico do martírio naquele tempo.
Na alta idade média, missionários foram mortos porque introduziam uma religião que ameaçava a religião tradicional das tribos chamadas “bárbaras” e queriam destruir a coesão tribal, constituindo um perigo político.
Missionários cristãos foram martirizados por muçulmanos em diversas regiões ainda que não freqüentemente porque a sua presença era uma ameaça para a segurança do povo. Depois da invasão da América pelos cristãos, vários missionários foram condenados à morte por povos originários que os trataram como invasores e destruidores do seu país. A presença dos missionários era ambígua porque eles acompanhavam os invasores e nem sempre se dessolidarizavam deles. Aqui no Brasil tivemos os mártires de Natal recém canonizados. Morreram porque os índios viram neles uma invasão. Verdade que foram excitados pelos “hereges” holandeses, mas para eles o problema não era a heresia, mas a invasão.
Nos tempos modernos, católicos foram mortos pelos protestantes pela sua fidelidade ao Papa em nome de Jesus Cristo, e protestantes foram mortos pelos católicos por causa da sua fidelidade ao Papa em nome de Jesus Cristo. Os católicos mortos nessa circunstância foram considerados mártires, mas não os protestantes embora todos quisessem morrer por fidelidade a Jesus Cristo.Mas a luta religiosa era um aspecto da luta entre Estados rivais
Dessa maneira o conteúdo daquilo que fizeram os cristãos para ser mortos foi muito variado. Na Revolução francesa católicos tradicionais foram perseguidos e mortos porque se negaram a aceitar o papel que o Estado queria dar à Igreja, rejeitando o Papa. Da mesma maneira na China comunista foram perseguidos e mortos porque não queriam separar-se do Papa. A razão era política: aos olhos dos perseguidores eram traidores porque se submetiam a uma autoridade estrangeira. Para os revolucionários liberais, os católicos colocavam a sua fidelidade ao Papa acima da fidelidade às autoridades do seu país. Não esqueciam que o Papa tinha sido o chefe político da cristandade até o final do século XVIII. Da mesma maneira cristãos foram perseguidos e mortos no Japão, no Vietnam porque foram considerados traidores do seu país. A sua atuação tinha um efeito político e foram condenados por motivos políticos. Eles queriam dar testemunho de Jesus Cristo, mas a circunstância em que o fizeram fez com que fossem vistos como traidores, invasores, destruidores da ordem social. O martírio era ato político porque a religião era a base da política e anunciar uma nova religião era ameaçar a constituição  política dos países. Isto não diminui o valor do testemunho desses mártires, mas explica porque foram martirizados. Não queriam destruir a sociedade em que entravam, mas estavam fazendo-o inconscientemente. O martírio sempre é ato político. Sempre foi uma afirmação de Jesus Cristo, um testemunho, mas esse testemunho era ao mesmo tempo uma intervenção na situação social dos seus interlocutores que queriam evangelizar.
Hoje em dia estamos assistindo a um imenso fato de revolução cultural pela secularização da sociedade. Antigamente a religião e toda vida social estavam unidas. Política e religião estavam estreitamente unidas. Uma sociedade podia dificilmente aceitar a entrada de uma religião  estrangeira. Hoje em dia, entre política e religião  a separação ficou total. Houve no século passado o que P. Tillich chamava de quase-religiões, entre elas havia o comunismo ou o liberalismo. Os Estados comunistas ou liberais ainda tinham motivos para perseguir os cristãos porque achavam ainda que política e religião  eram unidas intrinsecamente e as suas ideologias eram quase-religiões . Mas essas quase religiões desapareceram. Os comunistas de hoje aceitam perfeitamente as religiões, assim como o resto dos Estados. Entre os poucos Estados que ainda praticam a intolerância religiosa podemos citar e Arábia Saudita, e outros nomes não aparecem com evidência.
Isto significa que a política deixa plena liberdade ás religiões. A liberdade religiosa está inscrita em quase todas as constituições . De fato, os Estados já não de sentem ameaçados pela religião  ou por uma religião. Acham que a religião  não vai interferir nas grandes opções políticas, e não é necessária para o exercício do poder político. Anunciar Jesus Cristo já não é um ato que aparece como rebelião ou invasão .
Até hoje os cristãos tinham sido perseguidos por motivos políticos porque a sua religião  aparecia como um perigo político, por diversas razoes. Hoje em dia ninguém vai ser perseguido pelo Estado por motivos religiosos. Nenhum pregador de religião vai ser perseguido pelas suas atividades religiosas. Se se proclama o evangelho de Jesus em forma religiosa, a polícia não vai intervir. Pode-se pregar qualquer religião, que o Estado lhes deixa plena liberdade. Nos Estados Unidos há 38.000 religiões inscritas oficialmente e todas convivem pacificamente. Não influem nas bases da sociedade. Por isso mártires como nos séculos I a XX já  vão deixar de existir. O mundo mudou.
Isto não quer dizer que os cristãos já não podem ser perseguidos. Mas não serão perseguidos por motivos políticos, mas por motivos sócio-econômicos. Pois, o poder real não está no Estado, mas nas forças sócio-econômicas. O cristianismo pode não ser ameaça para o Estado, mas pode  ser ameaça pelos que dominam a economia do mundo ou de uma região do mundo. Não é ameaça como religião, mas porque anuncia uma nova sociedade com novas relações sociais entre todos os seres humanos, e por isso contesta os poderes econômicos. Pois, o cristianismo é anuncio do reino de Deus que é reino de justiça. Jesus foi pobre para assumir a condição  de todos os oprimidos da história. Anunciou e iniciou um reino de amor em que todos estariam a serviço de todos numa verdadeira comunhão. A comunhão  entre os seus discípulos seria a imagem e o projeto para toda a humanidade. Ora quem anuncia com força essa mensagem não tarda em ser perseguido pelos donos da economia.  Muitos já foram mortos pelo fato de anunciar a justiça denunciando as cruéis injustiças que existem.
Quem ensina a doutrina social da Igreja nunca vai ser perseguido porque ninguém se sente acusado por ela. Mas se alguém entra no concreto da sociedade, denuncia fatos concretas e exige reformas concretas vai ser perseguido pelos donos do poder que não são os governantes titulares mas os donos da economia. Quem  pretende iniciar uma sociedade diferente feita de justiça e de não  violência, num caso bem concreto, em que se sabe qual é a injustiça, qual é o fato de opressão e que se sabe quais são os culpados, pode ser morto como já aconteceu muitas vezes nos últimos tempos. Quem denuncia “aqui”, ‘tal dia”, “tal pessoa”, já sabe o que pode acontecer, assim como aconteceu no martírio de dom Oscar Romero. Ele sabia, mas como Jesus foi ao encontro da cruz.  Tantas outras pessoas seguiram o mesmo caminho!
Muitos se sentem revoltados pela injustiça, pela guerra ou pela violência, mas não fazem nada. Alguns resolvem agir. Levam a sério o evangelho e com uma fé total no caminho de Jesus, decididos a dar testemunho da justiça até a cruz, de fato morrem crucificados. São   mortos por causa da sua fidelidade ao caminho de Jesus, ao apelo de Jesus que foi ao encontro da cruz porque não se deixou intimidar por ninguém, e, sem armas, enfrentou um inimigo dotado de todas as armas disponíveis.Esses serão os novos mártires e podemos pensar que serão muitos no futuro porque a situação mundial já é intolerável. Alguns não vão poder aceitar sem reagir e vão refazer a paixão de Jesus.
Proclamar o nome de Jesus não tem influencia, mas deixa todos na indiferença. Aliás os perseguidores muitas vezes se proclamam cristãos  verdadeiros e adoradores de Cristo. Mas enfrentar o pecado do mundo como fez Jesus, enfrentar os poderes que cometem esse pecado, leva para a cruz.
O que faz o martírio é o radicalismo do seguimento de Jesus, sabendo tudo o que pode acontecer. É o radicalismo do amor ao próximo vivido na prática e nos fatos reais. O novo mártir sabe que está movido pelo amor de Jesus que está no seu coração  no amor radical aos irmãos  oprimidos. A sua proclamação do reino de Deus é presença ativa de Jesus, afirmação de Jesus nos tempos presentes. O que Jesus quer é a superação das injustiças e opressões e de todas as formas de violência.
De vez em quando os Estados ainda poderão perseguir clandestinamente quando são totalmente dirigidos pelo poder econômico. Mas de modo geral os próprios poderes econômicos se encarregam do trabalho e fazem com que desapareçam os que incomodam o seu poder. Os casos não faltam na história recente do Brasil ou de outros Estados. O fato do que podem contar com a impunidade mostra que eles são  o poder supremo na sociedade. Enfrentar o poder supremo é como enfrentar o Imperador nos primeiros séculos. Se os novos mártires invocam o nome de Jesus, os perseguidores respondem que os verdadeiros católicos são eles, e que podem citar autoridades religiosas que lhes dão apoio, e muitos que mantêm um silêncio prudente. Os mártires são  condenados não por serem cristãos, mas por serem renegados, traidores da religião, subversivos, terroristas. Jesus também foi condenado por ser destruidor da religião, desobediente, rebelde as autoridades constituídas, por ser um falso Messias.
A história traz contextos diferentes. Formas de martírio que houve no passado, são impossíveis hoje porque o poder mudou, o dominador mudou, o inimigo do reino de Deus mudou. Depois das situações atuais, virão tempos novos e o martírio mudará de novo na sua figura concreta. Mas basta olhar para os tempos atuais e identificar o que está acontecendo hoje em dia.

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